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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A Nova Política

O que será esta nova política? 

Caracterizo-a por alguns traços básicos:

1) do ponto de vista dos meios utilizados, são os mais avançados. A informática e, sobretudo, a Internet constituem seus instrumentos por excelência. Mas não se trata de meras técnicas, de simples meios a serviço de fins que continuariam sendo os mesmos do passado;
2) e isso porque a articulação das pessoas entre si, a formação de seus elos sociais, não está mais determinada por meios do passado, que se concentravam em torno de uma idéia-chave, a de interesse, geralmente econômico. Este continua tendo seu peso, mas que diminui cada vez mais;
3) assim, vão perdendo sua importância relativa – embora continuem existindo – as instituições pesadas, permanentes, sólidas, como partidos, sindicatos, associações de defesa de interesses precisos, lobbies; 4) e vão crescendo, e aumentando seu peso relativo na cena política, ainda que sem eliminar as instituições pesadas e sólidas, outros elos sociais, mais leves, até mesmo mais fracos, mais montados em algo ambíguo, que ainda não sabemos em que medida chamar de ideal, em que medida chamar de desejo;
5) tudo isso se ligando a uma alteração significativa nas identidades. Até um tempo atrás, cada pessoa se situava na sociedade a partir de uma identidade principal claramente determinada. Podia ser sua profissão, no caso de um homem, a condição de dona de casa, no caso da mulher, a religião ou opção política, em certas situações – mas sempre havia um foco central a identificar cada um. Hoje, não há mais. Desenvolveremos, neste prefácio, o que é esta nova política e de que modo ela contrasta com suas antecessoras, a política antiga e a moderna.
2
A política que chamamos dos antigos é essencialmente a de Atenas e Roma. Na verdade, ela beneficiava, no apogeu da forma democrática em Atenas e da republicana em Roma, poucas dezenas de milhares de pessoas. Em contraste, a China da mesma época reunia muitos milhões de indivíduos, em torno de uma concepção do poder completamente diferente. Pode então soar arbitrário que estudemos no pormenor uma minoritária política ocidental, e ignoremos por completo uma majoritária política oriental. Pode bem ser que, no futuro, se dê maior destaque à idéia chinesa do governante como jardineiro, aquele que assegura o equilíbrio social e cósmico, do que à sua concepção ocidental como pastor, que tange e mata, e modernamente como soberano, como quem faz e inova.
Mas, se isso pode um dia vier a ocorrer, ainda não é o caso. Porque certamente a mais forte das idéias políticas, em nosso tempo, é a de democracia. E ela é ocidental ou, para sermos exatos, grega. De Roma, tiramos também uma idéia forte, que é a de república, ou seja, a convicção de que o poder deve estar voltado para a res publica, a coisa pública, o bem comum. Desenvolvi estas duas idéias em outros lugares1, e por isso não as pormenorizo aqui.
O essencial é que costumamos entender a política antiga a partir dasvirtudes. Seja em Atenas, seja em Roma, supõe-se que o governante e os cidadãos coloquem, à frente de tudo o mais, o bem comum, a pátria. Isso distingue a "boa política" antiga, a dessas duas cidades exemplares, das outras, em especial da francamente má, que é a dos tiranos. Aliás, ao falar numa boa política estou realizando uma leitura retrospectiva, de quem – com os olhos de hoje – considera aí residirem as melhores contribuições dos gregos e romanos para a política moderna. Mas esta atitude é inevitável.
Uma forte idéia dos antigos é que não haveria boa política dissociada da ética. E multiplicam-se as histórias romanas de heroísmo, como a de Múcio Sévola, que deveria matar o chefe inimigo que cercava Roma – e aprisionado, ameaçado dos piores tormentos, toma a iniciativa de expor a mão sobre um braseiro, deixando-a queimar por inteiro, sem soltar um gemido sequer de dor, punindo-a porque ela errara o alvo.
* * *
A modernidade mudará de registro. A política moderna não é das virtudes, mas dos interesses. Maquiavel, esse autor tão mal falado, o anota quando, no cap. XV d’O Príncipe, diz que pretende tratar de Estados que realmente existem, e não de políticas ideais: porque, se ele idealizar, só ensinará o chefe político, "o príncipe", a correr à própria perda, em vez de preservar seu estado – isto é, sua condição de governante – e seu Estado. Maquiavel procurará, acrescenta, dizer coisa útil. E com isso deporta as virtudes para a vida privada, retirando-as da vida pública. Se ele chama de virtù a capacidade do líder para agir de maneira criativa e bem sucedida, vencendo as circunstâncias, essa qualidade nada mais tem a ver com a virtude moral.
É a idéia de interesse, porém, que representará a mudança radical que caracteriza a modernidade. Tomemos a crítica que Thomas Hobbes, por exemplo, faz à política antiga. Muitos, diz ele, leram os clássicos gregos e romanos que tratam da política, em especial Aristóteles e Cícero. Mas quanto derramamento de sangue causou, no Ocidente, o aprendizado do grego e do latim! ironiza ele, no cap. 21 do Leviatã. Isso porque esses leitores modernos dos antigos acreditaram nas qualidades das democracias e repúblicas, e assim se voltaram contra as monarquias da época "atual".
Essa crença os cegou. Enganou-os. O que pode abrir-lhes os olhos? É a compreensão de seu verdadeiro interesse. E não importa que Hobbes mal empregue essa palavra, que será difundida sobretudo com Tocqueville, o qual falará em "interesse bem compreendido". A idéia já está presente em Hobbes e nos políticos dos séculos XVII e XVIII. O que se deve ensinar aos homens é seu autêntico interesse. Este consiste, antes de mais nada, em evitar a morte violenta. Se cada um de nós buscar satisfazer só o seu egoísmo, correrá para a própria perda. Devemos ceder. Devemos negociar. Devemos contratar. Os modos de fazer isso variam conforme o autor, mas o modelo é sempre um: o filósofo da política mostra ao indivíduo desorientado qual é seu verdadeiro interesse, e este último, esclarecido, renuncia a uma parte dos seus desejos, para se preservar. Com o tempo, o interesse adquire um tom econômico. É o que melhor permite quantificar ganhos e perdas. Como ganho mais, como perco menos? eis a questão.
Sobre essa idéia de interesse, vai-se construir todo um sistema político. O que são partidos, se não agrupamentos que reúnem interesses? O que é a pregação política, se não o empenho de mostrar que meu interesse não está no outro partido, mas sim neste daqui? Se sou trabalhador, como votarei num partido que favorece os interesses dos patrões? Se vivo de rendas, por que apoiaria uma agremiação que defende sobretudo os assalariados? A racionalidade assim se sustenta de alguma forma no dinheiro. E não é casual que, no século XIX, apenas votasse quem possuía bens. A suposição é que o proprietário, por ter mais a perder em caso de uma guerra desastrada ou de simples má gestão demagógica do bem comum, seria mais sensato, promovendo políticas mais racionais, mais equilibradas. Mas, com o passar do tempo, dessa racionalidade dos interesses econômicos que beneficiava sobretudo os proprietários, passou-se também a uma racionalidade econômica favorável aos trabalhadores. Nasceram, cresceram, fortaleceram-se os sindicatos.
Todos esses elementos continuam importantes. Seria um erro proclamar, e pior ainda celebrar, o fim dessa política. Ela continua forte e mesmo necessária. Digo até mais: ela continuapredominante. E nada tenho contra isso. A discussão dos interesses continua sendo crucial. Num país como o nosso, por exemplo, a gritante injustiça social se sustenta num reconhecimento muito claro, por parte das classes dominantes, de seus interesses na exploração do trabalho, e isso requer que as pessoas e grupos empenhados em mudá-lo lutem no plano dos interesses, e portanto no da economia. Não o fazer é enganar ou enganar-se. Contudo, a política dos interesses tinha um pressuposto fundamental que, este sim, entrou em séria crise. Esse era o de que cada um de nós teria uma identidade prioritária, preferencial, claramente determinada.
Em outras palavras, a política moderna sustenta-se numa idéia desujeito. Cada um de nós – cada sujeito – é prioritariamente, digamos, patrão, operário, dona de casa. Dessa localização, dessa identificação, torna-se possível inferir quais são os interesses de cada um. Se sou patrão, religioso e chefe de família, segue-se que votarei num partido conservador. Se sou trabalhador, não pratico a religião e não tenho filhos, segue-se que é provável eu votar num partido de esquerda. Se não trabalho, sendo esposa e mãe, segue-se que adotarei uma posição política mais tradicional.
Aliás, eu poderia ir mais longe. No século XIX, quando essa política se consolida, o patrão é chefe de família e, mesmo que em seu foro íntimo seja descrente, pelo menos publica uma religião. O operário europeu não tem família e não gosta da Igreja. A mulher só é valorizada se for filha, esposa, mãe. Uma identidade acarreta todas as outras. A identidade é por pacote: vem um conjunto, não dá para selecionar o que queremos ou não. Ela é prêt-à-porter.
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Mas a crise das identidades torna insustentável o primado exclusivo dos interesses. Hoje cada um de nós tende a ser uma mistura de identidades. Lembro com que estranheza, em 1973, no aeroporto de Zurique, vi um segurança de vinte anos de idade com um brinco na orelha. Na época, uma coisa contradizia a outra. A profissão entrava em choque com o enfeite. A seriedade da função repressiva conflitava com o prazer, a ruptura, o caráter contestatório do adorno. Hoje, isso coloca cada vez menos problemas. Há homossexuais assumidos que lideram partidos de extrema-direita. Há empresárias bem sucedidas que são mães de família. Há evangélicos em todos os partidos, bem como católicos devotos. Em nossos dias, essas diferentes identidades que cada um assume tendem assim a conviver, embora com um variável grau de conflito. Então, qual identidade – e qual interesse – prevalecerá? Dependerá das circunstâncias. Dependerá das ênfases. Colegas de trabalho, com o mesmo perfil – digamos, professores, negros, provenientes da classe média baixa, votando no PT – podem priorizar diferentes aspectos de um mesmo mix de identidades. Um pode ser militante do movimento negro, outro, do PT, um terceiro, filatelista ou músico. Notem, aliás, como perdeu relevo a cobrança por participação política ou sindical. Excetuados os momentos decisivos, quando uma ameaça séria se coloca a alguma identidade, não nos sentimos autorizados a exigir dos outros uma atuação constante e prioritária em tal ou qual direção política. Vale a pena insistir nisso, porque quem trabalha com política costuma ressaltar a opção partidária, explícita ou implícita, e o que estamos vendo é que ela tende hoje a se reduzir.
Disso decorrem dois resultados. O primeiro é que as instituições – antes sólidas – que representavam interesses perdem, precisamente, sua solidez. É verdade que os cientistas políticos insistem na importância de termos partidos fortes, representativos, disciplinados, bem definidos. Mas penso que, embora esses devam continuar existindo, essa solidez encaminha-se para o passado. Eles se conservarão peças importantes no sistema político, mas terão cada vez mais que repartir espaço com outros atores. O mesmo vale para os sindicatos. Porque a novidade é que novos traços identitários foram surgindo, crescendo e ocupando lugar. E a característica – eis o segundo resultado – desses novos traços é que eles não podem ser reduzidos ao esquema dos interesses.
São, sim, reduzidos aos interesses certas vezes. A sociedade norteamericana está construída com base nestes últimos. Daí que qualquer movimento, gay, feminista ou negro, se realize enquanto lobby. Os lobbies junto ao Congresso norte-americano são o modelo mais acabado de representação quase indisfarçada de interesses. Nos Estados Unidos os próprios movimentos sociais se convertem em lobbies2. Mas essa é uma característica daquele país, difícil de exportar para outros.
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O que cada vez mais vivemos é outra coisa. É um dilema. Ou temos uma histeria identitária, ou uma abertura de identidades. A histeria ocorre quando assumo uma só, dentre as várias identidades que tenho – e justamente por saber, mesmo que inconscientemente, que "sou trezentos, trezentos e cinqüenta", forço-me na direção de apenas um desses papéis. Isso se vê quando o contato social se reduz a um parque temático. Quem só freqüenta o mundo gay, ou o mundo yuppie, ou o mundo petista, ou o ambiente socialite, acaba correndo o risco de tornar-se um parque temático portátil. Veste-se de um jeito, assiste a determinados espetáculos, opina de maneira previsível. Vive a sociedade como uma tribo. Evidentemente a coisa pode ser bem pior e, em vez de ser apenas ridícula, a pessoa pode tornar-se criminosa, como foi o caso quando se desagregou a Iugoslávia e assassinos apareceram por todos os lados, expressão de diferentes histerias identitárias. Ou nos fechamos numa só identidade, dizia, ou nos abrimos. Esta é a melhor perspectiva. Ter consciência de suas várias e conflitantes identidades é enriquecedor. E com isso chego à política que conduzimos durante a campanha. Entre minhas diversas identidades, fraturas se criam. Não sou um todo homogêneo. Stendhal bem o sabia, que dizia – no começo do século XIX – que detestava politicamente a direita no poder, simpatizando com a oposição e o proletariado, mas não conseguiria conviver socialmente com os miseráveis. Essa cisão no ser é uma característica que vem desde os primórdios da modernidade, mas foi, até poucos anos atrás, abafada.
O exemplo de Stendhal pareceria um equívoco, um atraso (e é um exemplo sem dúvida desagradável, politicamente incorreto, diria um jornalista3), mas na verdade era uma antecipação. É claro que substituiremos, cada vez mais, os termos que Stendhal usou. Falaremos na difícil conciliação de uma origem de classe, uma educação, uma escolha política, uma fé religiosa, uma orientação sexual, gostos artísticos, valores e sabe-se lá o que mais.
A cada um desses aspectos, tendemos a conferir cada vez maior intensidade. Antes, uns deles eram dispensáveis ou francamente secundários. Prevalecia a origem de classe, harmonizada com o dinheiro e a profissão. Hoje, não só os lados menores cresceram, como podem eles próprios prevalecer. Esta fratura causa dificuldades e mesmo sofrimento. Mas tem um enorme mérito. Abre espaço para o novo. Uma cisão dentro de nós facilita o diálogo. Reduz a blindagem. As identidades bem acabadas blindavam a personalidade. Nada entrava. Mas nada disso elimina, enquanto vivermos numa sociedade fundamentalmente injusta do ponto de vista social, os interesses que ainda pesam enquanto hipoteca sobre nós. É possível e provável que, quando superarmos nossa dívida social, a questão do que não é interesse se libere e floresça. Aliás, digo algo nesta direção no manifesto de lançamento de minha candidatura, adiante, no cap. 2. Numa sociedade justa, poderíamos – talvez, não estou certo – pensar só por pensar. Mas com toda a certeza hoje, no Brasil, aresponsabilidade social é fundamental. A questão, pois, é como fazer que uma nova política, mais leve, mais fundada na inteligência, seja o melhor meio de concorrer para a responsabilidade social da ciência. Quando, daqui a algumas páginas, eu insistir em que o nosso interlocutor principal deixe de ser quem está no governo para se tornar a sociedade – bem mais difusa e rica que o poder de Estado, mas, acima de tudo, aquela que numa democracia é quem detém com legitimidade a soberania –, é esta proposta que estará em jogo.
* * *
É esta convicção – de que estamos diante de seres humanos mais ricos, mais variados – que me levou a fazer uma campanha de idéias. Penso que nossa época é uma das que mais permitem a discussão em torno de temas. É claro que são grandes os fechamentos. Mas são menores do que nos tempos em que a identidade vinha pronta.
Mais um ponto: somos cientistas. A SBPC, como as sociedades científicas, culturais e as universidades, é um ambiente cujos membros trabalham com o pensamento. Nossa própria existência profissional depende de acreditarmos na importância das idéias, das experiências, da pesquisa. Precisamos, sempre, provar à sociedade como um todo que temos um papel relevante a cumprir. Isto é, precisamos convencer nossos concidadãos, do político até o eleitor, que as idéias, a pesquisa e a experiência valem alguma coisa socialmente – melhor dizendo, que valem muito. Ora, como os persuadiremos se nós mesmos não acreditarmos nisso? Daí uma segunda razão para fazer uma campanha de idéias. Se realizasse uma campanha baseada numa rede de apoios – como, aliás, fez meu principal adversário – estaria apelando a interesses, a identidades, a necessidades, mas não a idéias. Apelaria ao fechamento, não à abertura.
Defenderia a permanência do mesmo, não o diálogo. Evidentemente, esses interesses têm valor. Laboratórios e bibliotecas precisam de verbas. Medidas têm que ser exigidas do governo. Mas este não é mais o cerne das questões. Uma nova política precisa estar centrada naquilo que vai além dos interesses. Esse "além dos interesses", essa fratura entre as identidades, é o que abre lugar para idéias novas, para uma recriação das relações entre o mundo da ciência e a sociedade.
Finalmente, o melhor veículo para isso é a Internet. Construir um site de campanha e, depois, usar a mídia eletrônica da SBPC era uma maneira de investir nesses furos na carapaça identitária. Ela custa muito barato, quase nada. Não é uma indústria, no sentido tradicional, o das matérias primas, sede física e tudo o mais que despende muito dinheiro e por isso mesmo constrói um poder ou uma força econômicos. Por isso, afirmei no começo que a Internet não é só um meio. Ela apenas se mostra interessante quando não a vemos como mero instrumento, mas como o meio adequado a um fim em especial, que é o de desvincular as pessoas de suas identidades conformistas. O que é fascinante nos jovens é como viajam mundo afora dentro de seus próprios quartos. É claro que precisam, sim, precisamos todos viajar fisicamente. Mas é bom que mesmo dentro do espaço confinado se abram janelas enormes para o mundo, para a diferença. Fazer uma campanha de idéias pela Internet é fazer uma diferença.

NOTAS
1 Ver "Democracia versus República: a questão do desejo nas lutas sociais", in Newton Bignotto (org.), Pensar a República, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000, e meus livros A República A Democracia, ambos São Paulo: Publifolha, 2001.
2 Ver o cap. "Grandeza e miséria do politicamente correto" de meu A sociedade contra o social, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
3 Menciono os jornalistas, porque são quem mais usa a expressão politicamente correto (ou incorreto).

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