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quarta-feira, 11 de abril de 2018

Ação popular: fiscalizando uma gestão municipal

Nesta sexta-feira (6/4), João Doria deixará a Prefeitura de São Paulo, rompendo o contrato de trabalho que havia assumido perante a população paulistana, a menos de 30% do prazo prometido.

Se, de um lado, a gestão foi breve, por outro, o passivo judicial que ela deixou foi significativo.

Nem irei detalhar aqui as ações judiciais de iniciativa do Ministério Público, que apontaram o uso da máquina pública para promoção pessoal. Abordarei as ações que ajuizei, conforme previsão da Lei 4.717, de 1965 – a lei da ação popular.

E, sobre isso, cabe fazer uma observação. Em tempos em que, com razão, a sociedade reclama para si um papel de maior protagonismo nos assuntos que dizem respeito à coisa pública, é preciso revisitar – e prestigiar – o instrumental trazido pela sobredita Lei 4.717/65. Ela permite que a população, nas hipóteses de dano aos cofres públicos e violação aos princípios constitucionais administrativos, exerça um efetivo controle sobre atos abusivos.

Ao início da gestão, chamou-me a atenção, como cidadão, o apelo midiático e o conteúdo vazio dos primeiros atos do então prefeito. Mas também me chamou a atenção, desta vez como advogado, a postura arbitrária de quem resolveu sair à caça dos grafites espalhados pela cidade, como se governar fosse exercer uma vontade pessoal. Quem mora em São Paulo sabe bem que o grafite faz parte do nosso patrimônio cultural.

Considerando que o Município, por previsão legal, dispõe de um conselho composto por representantes da sociedade civil, e que elabora as diretrizes para as políticas de preservação ao patrimônio paisagístico e cultural, ingressei com uma ação popular pedindo a suspensão da medida enquanto o conselho não se manifestasse – e cheguei a obter uma liminar nesse sentido. O próprio prefeito acabou admitindo o erro (depois, é verdade, de ser referir a mim, pela imprensa, em termos nada elogiosos).

Posteriormente, questionei a frenética política de doações de recursos feitas por empresas junto à Administração. Não pedi, nessa segunda ação popular, que tais doações fossem proibidas, pois, por óbvio, não sou contrário à filantropia. O que pedi foi que empresas doadoras de recursos não participassem de licitações públicas na gestão para a qual doaram, até para que não houvesse dúvida de que era de filantropia que se tratava. Tenho dificuldades em aceitar que empresas, que, por definição visam lucro (legitimamente, aliás), doem algo de dia e ganhem uma licitação à noite – e tenho certeza de que muitos departamentos de compliance pensam como eu. Não consegui a liminar, sob o respeitável argumento do juiz de primeira instância de que cada caso concreto haveria que ser individualmente analisado. Essa é uma história, portanto, que está longe de se encerrar. Veja-se, por exemplo, o que aconteceu na licitação para manutenção dos semáforos (e quem mora na Capital sabe do transtorno ocasionado pelo horroroso funcionamento deles). A segunda colocada alegou que a vencedora foi indevidamente beneficiada, destacando o fato dela ser doadora da Administração. A licitação chegou a ser suspensa pelo Tribunal de Justiça – e sabe-se lá a extensão do prejuízo que disso adveio a toda população.

No curso dessa segunda ação, verifiquei que o Município não divulgava os dados relativos a essas doações em seu portal de transparência – e que até devedores de tributos posavam de beneméritos. Essas doações se constituem em receita – e, como tal, precisam ser divulgadas. Fiz uma representação ao Tribunal de Contas do Município e liminarmente o pedido foi acatado. Foi por conta disso que pudemos saber que menos de 10% das doações propagandeadas eram efetivamente recebidas.

Fiz outra representação, solicitando informações a respeito do recebimento, pelas unidades públicas de saúde, de medicamentos que se encontram próximos da data de vencimento – e que, por isso, não têm valor de mercado. Não se sabe qual o percentual de descarte, pela Prefeitura, dos ditos medicamentos nem o custo respectivo. Apesar do TCM ter determinado a manifestação da Municipalidade, não houve resposta – o que, convenhamos, não demonstra respeito pelos órgãos de controle, no particular, e pela transparência, no geral.

Quando o atual prefeito, às vésperas de deixar o cargo, decretou que ele e seus familiares teriam direito a se utilizar da Polícia Militar, por um ano após o encerramento do mandato, a repercussão foi grande, pois a sociedade não tolera mais esse tipo de mordomia. Tampouco o Direito: com fundamento no princípio da moralidade administrativa, ingressei com outra ação. Depois disso, o então prefeito, num primeiro momento, disse que pagaria do próprio bolso esse serviço; depois, alterou o decreto para que ele valesse apenas para o sucessor; e, por fim, acabou revogando a norma. Tenho sérias dúvidas se o decreto seria revogado caso não houvesse uma ação popular apontada em sua direção.

Moralidade administrativa também não se viu no triste caso da parceria público-privada da iluminação. Conforme noticiou a imprensa, tudo leva a crer que a diretora do departamento de iluminação pública supostamente receberia recursos do consórcio vencedor da concorrência pública. Fez bem o prefeito em exonerar a tal diretora. Mas foi apenas uma meia decisão. É incompreensível que, se correta a tese do ilícito, o consórcio continue prestando serviços ao Município e, ao final de cada mês, apresente uma polpuda fatura de alguns milhões de reais. A moralidade precisa valer para todos. Dizer que o serviço é essencial e que por isso é preciso conviver com quem, em tese, praticou ilícitos é confissão explícita de incapacidade de gestão. O direito administrativo possui mecanismos para soluções emergenciais – e caberia a um gestor digno do nome utilizá-los o quanto antes. Ingressei com outra ação popular requerendo o afastamento do tal consórcio, cuja liminar está pendente de apreciação.

Por fim, não menos incompreensível é a recente edição de decreto que proíbe a divulgação integral, no Diário Oficial, de contratos administrativos, aditivos, editais de licitação e remoção de servidores, dentre outros atos da Administração. Ao invés de facilitar o acesso à informação, criam-se dificuldades para que a população saiba o que se faz com o patrimônio público, ainda mais quando se anunciam grandes concessões e privatizações. Qual o objetivo disso? Seja ele qual for, ingressei com outra ação popular, dada a, a meu ver, gritante afronta ao princípio da transparência.

A Advocacia, em conjunto com o Ministério Público e a Magistratura, precisa agir de verdade, em respeito aos anseios de quem sai às ruas para pedir decência por parte dos agentes públicos. A Política não se exerce apenas através de um mandato – e a ação popular é aliada fundamental nessa batalha, que, no fim das contas, é de toda a sociedade.

Paulo Leme Filho – Advogado graduado em Direito pela USP, com MBA em gestão de saúde pela FGV. É fundador do Movimento Vale a Pena, ONG voltada à prevenção da dependência química e co-fundador do coletivo Elo Movimento, que tem por objetivo promover o debate sobre políticas públicas e cidadania

Fonte.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acao-popular-fiscalizando-uma-gestao-municipal-07042018

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